correspondências
Ana Flávia Mendonça
e Renata Santana
Recife - PE
curta metragem, 5 min. 2020
brisa que já não sopra mais
Hannah Greenhalgh
crônica de memória, 2017
Recife - PE
Eu lembro de como os tempos já foram… eu, você, seu vizinho, aquelas árvores do seu quintal, os pássaros que cantavam na sua janela quando você visitava sua avó naquela cidadezinha de interior… era tão bom, não era? A brisa fresca passando, movendo os acabemos cor de chocolate da menina da porta azul, que morava no fim da rua, bem na frente do campo onde a bola rolava e todos riam, mas que às exatas 17h30 eram interrompidos por mães desesperadas, preocupadas que seus filhos pegassem friagem.
Sua avó fazia um café gostoso, um bolo, uma bandeja de suspiros de limão, qualquer comidinha que aquecesse a alma e o coração. Quando voltava para a cidade, sentia falta, lá era buzina para todo lado, fumaça de cigarro, de carro, de fábrica… fumaça que invadia os pulmões e acinzentava a alma e o organismo, deixando tudo podre e cinza como poeira. Você lembrava da pequena cidade, aquela paisagem tão clara na lembrança, e pensava: "Aquilo, sim, era lugar de se viver".
Até que você volta. A garota de cabelos cor de chocolate e olhos de mel já não era tão doce, sua porta agora era uma grade preta de um prédio moderno, para o qual fora obrigada a se mudar, já que sua casa, e aquele campo bonito onde tinham as mangueiras, foram substituídos por um estacionamento e uma fábrica. Não existia mais brisa, os pássaros, agora trancafiados, se pareciam com os humanos, não reclamavam, pois sabiam que ali estavam mais seguros. A friagem já não era mais motivo de preocupação. Agora, o temor tinha outro nome: dióxido de nitrogênio, e outros gases.
Sua avó não fazia mais café, nem um bolo, nem uma bandeja de suspiros de limão, ela não fazia mais nada, sua respiração estava falha, ela já não podia mais respirar direito. Asma. Bronquite. A alma e o coração estavam frios, tristes e nublados, mas o corpo estava quente, em chamas, pedindo por algum alívio, pedindo pela sombra fresca da maior árvore que tinha ao lado do riacho que passava por trás da rua da igreja… mas essa sombra não estava mais lá. Quer dizer, estava sim, a árvore continuava ali, mas o cheiro de dejeto de fábrica impedia qualquer aproximação.
E assim foi se afastando, sumindo, perdendo… e assim foi se acabando, dizendo adeus… todas as paisagens viraram meras lembranças, todos os amores e brincadeiras que compunham o cenário, eram apenas memórias vagas que habitavam num local do coração que agora era apenas dor. Todos os amigos, toda a família, todos os vizinhos, todas as árvores, todos os pássaros, todas as portas azuis, toda a vida.
a cidade faz parte de mim
e eu faço parte dela
Rebeca Liberal
Recife - PE
fotografias analógicas, 2022
concordia: sobrepor-se
Clara Malaquias e Manoel Malaquias
Recife - PE
álbum visual / curta metragem, 13 min. 2022
o homem marrom
Andréa Mattos
crônica, 2021
Feira de Santana - BA
O nome dele poderia ser José, Paulo, Tião…
Naquela tarde mais que ensolarada, disputava uma sombra do nada, em meio ao asfalto quente de um subúrbio “classe média” da cidade de Feira de Santana, a Princesa do Sertão.
Caminhava descalço e era (ou estava) tão cinzento quanto a terra seca da qual ele arrancava matos das portas das casas. Os instrumentos de trabalho: uma faca de mesa e os próprios dedos, que pareciam não ter mais unhas. As mãos entrevadas pelo constante ato de puxar os matos acompanhados por espinhos. Será que sentia dor?
Já era tarde e os raios solares eram interrompidos pela passagem rápida de pessoas indo em busca de sombra. O carro do picolé passava. O carro que vendia ovos todos os dias e o dia todo, também. Os caminhões, as motocicletas, as bicicletas passavam. Todos passavam. Mas o guerreiro permanecia exercendo a sua atividade com afinco.
Ele olhava para os indivíduos e tentava balbuciar algo. Não entendiam. A voz era fraca. Seu sorriso branco contrastava com a pele escura. As roupas eram tão rotas. Seriam azuis ou marrons?
A casa na qual ele arrancava o capim estava fechada. Ele chegou até o portão. Chamou. Ninguém respondeu. Chamou mais umas duas vezes. Nada. A faquinha na mão trêmula.
Seus gritos de aflição chamaram a atenção de um segurança de uma empresa, que por compaixão ou curiosidade, apareceu no portão. Balbuciou novamente. Dessa vez apontava para a boca e para o céu. O outro logo entendeu: ele tinha sede. Sinalizou que ficasse exatamente ali. Poucos minutos depois, surgiu com um copo descartável contendo água.
Quis agradecer pelo primeiro alimento que consumia naquele dia. Sorriu lindamente, mais uma vez. O segurança teve o cuidado de jogar o copo na calçada e retornou a sua vigilância.
O herói do asfalto quente continuou arrancando os matos. Só naquele momento a dona da casa apareceu e, depois de verificar que a sua porta estava limpa, separou umas três moedas, jogando nas mãos do homem, cansado e faminto, que mais uma vez gesticulou, levando as mãos em direção a boca. A madame fingiu não entender e entrou
na casa.
Com as moedinhas no bolso, o homem marrom e cinza seguiu a sua jornada, não se sabe se rumo ao alimento ou de outra residência para limpar.